quinta-feira, fevereiro 12, 2015

Retratos escritos

Exercício de descrição de rostos, projeto para um face book de verdade.

1.
Seu rosto era arredondado como se não tivesse conhecido, não digo intimamente, mas mesmo corriqueiramente, a fome. Talvez fosse o medo da fome que o fizesse comer com tanto desespero e urgência, mas independente do motivo, o cara tinha um apetite que fazia inveja a qualquer um. Esse apetite combinava com uma voz alta e um jeito de falar que lembrava alguém falando de boca cheia. Um avesso da calvície ocorria na sua face, os cabelos pareciam invadir sua testa, trazendo à sua expressão um aspecto turvo e canino. Quando um sorriso emergia de sua boca, aquele monte de dentes brancos e alinhados era uma discrepância com os pelos e sisudez das expressões. Dócil, fazia-me entender que não devia julgar um livro por sua capa.

2.
O aspecto roedor de sua face tornava sua desconfiança e atitudes sorrateiras ainda mais evidentes, um sorriso debochado contrastava com o gesto sempre constante de por a mão em frente a boca ao sorrir. Na brecha de tempo entre o riso que escapa e a mão que o cobre, você podia perceber a faísca de deboche e zombaria. A barba lhe era farta, mas sempre feita, como se isso o fizesse mais honesto. Evitava o olhar direto nos olhos e seu andar era também hesitante, acho que nunca fez barulho ao caminhar, talvez nem tenha tropeçado na vida, mas isso não o impedia de ser um pouco sujo, num sentindo mais espiritual. Aproveitava brechas para fazer colocações que, se analisadas adequadamente, facilmente caíam no terreno da ofensa. Seus olhos teimosamente se direcionavam para os lados, como se algo ou alguém estivesse pra chegar de supetão. Era um rosto que não inspirava confiança alguma e com certeza sofria por isso.

3.
A pessoa tem um rosto que acompanha seus olhos, nenhuma expressão consegue substituir a mensagem daquele olhar, a claridade da sua íris torna-o ainda mais transparente e revelador. Sua expressão ganhou contornos marcantes com o passar dos anos, suas questões se aprofundaram com as marcas de expressão. Ainda que não tenha respondido nada a que se tenha questionado, digo, uma resposta contundente para se carregar até o fim da vida, parece em harmonia com essas questões. Seu rosto não transparece ignorância, doce, sereno e claro, com lábios macios, tenta recordar minha memória, torna-a suscetível a diversas formas de desejos, mais invasivos ou não. Trabalha com o olhar, como não poderia deixar de ser, seria o mesmo que um orelhudo negando sua pré-disposição para a audição, ou uma bocuda para a fala.

4.
Pense num rosto engraçado, ainda que, as vezes, tentasse abordar assuntos sérios a graça da sua expressão não me permitia acompanhar a profundidade do tema. Já o vi chateado com minhas risadas que lhe pareciam sem fundamento, mas aquele combo de expressão facial e sotaque meio matuto faziam da tarefa de conter a gargalhada, uma missão impossível. Seu olhar não era aberto, as pálpebras cerravam-se nas extremidades externas, seu nariz levemente arredondado e sombrancelhas fartas tinham algo de cômico e porque não de palhaço, sentia-se bem contando causos e piadas, mas sofria ao ser sério. Não sei como brigou com a namorada, pessoa cuja cara de limão era totalmente oposta a dele, mas um dia conseguiu se libertar daquele relacionamento fajuto. Perdi o contato, mas só de lembrar do rosto dele um sorriso me visita.


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