quarta-feira, setembro 02, 2009

Consumido pelo fogo

"Os homens receberam seu eu como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros, para que ele possa com tanto maior segurança se tornar igual" T. W. Adorno


A crise do sujeito criou as condições existenciais e históricas para o desenvolvimento do sujeito da crise. O indivíduo que resulta do processo de estratificação inaugurado com a separação da economia das demais esferas da vida não encontra limites para outras especializações e separações. Esse sujeito que se apresenta para a história flexível e superficial ganha, através da ideologia pós-moderna, uma complexidade que só tem paralelo com o tamanho de seu vazio, inclusive o de origem intelectual. É nítido que essa complexidade é estritamente ideológica, porque o indivíduo pós-moderno é flexível no pior sentido do termo, digo, flexível sobretudo no que tange as suas mais variadas formas de submissão.


Experiência em primeira pessoa.

Uma força de massificação ou centrifugação sempre me perturbou, essa mesma força até então nebulosa, era difícil de decifrar. Chamei de "vontade de rebanho" após ver a organização espacial de um camping, mas não fui mais longe do que arranjar uma nomenclatura. Essa força durante um longo período da minha vida aproximou-me de encontros e situações que dificilmente alguém aceitaria de bom grado e isso caracterizava boa parte dos dois fronts de encontro. Esse tipo de destino social que alguns tentam atribuir à mãos invisíveis ou outras forças exteriores passíveis de qualquer identificação mais ou menos esotérica é, em boa parte, de minha inteira responsabilidade. Essa força sempre nos uniu enquanto separados, como bem observou Debord e a IS. E a minha intenção era experimentar nesses encontros forçados de primeiro grau aquilo que Cláudio Duarte apontou no texto sobre o "Homem sem qualidades" onde ele tem como questão principal "mostrar que mesmo assim tal homem suporta a particularidade de uma certa época histórica".

Suportar a particularidade de uma época, ao invés de vivenciá-la e contruí-la é o tipo de adaptação do homem sem qualidades. Suportar essa especialidade histórica, creio eu, só é possivel mediante a acumulação de alguns momentos impossíveis de serem desapropriados. Circunstâncias que só podem ser valoradas no universo da memória. Essa jornada individual, no meu caso, tornou-se com tanto maior segurança arruinada devido um processo incansável em busca do esquecimento absoluto. Tudo aquilo que escapou da compreensão no turbilhão socializador foi como a água que escapa por entre os dedos que almejam retê-la. Dessa pretensão metaforizada ficou simplesmente a sensação de umidade – uma forma nebulosa de frescor experimentada nas derivas. São raros e efêmeros os momentos recompensadores no deserto social. São as risadas e a casualidade das palavras que levam a uma comunicação profunda que fazem dos encontros uma possibilidade verdadeira de comunhão. Esse tipo de instante demora o suficiente para ser memorável é o tipo de riqueza há muito esquecida pelos materialistas de todo tipo. É o tipo de riqueza que consumi com o fogo e a fumaça.

Agora nem a saudade me resta, pois a saudade é o vazio preenchido por lembranças e boa parte das minhas estão deletadas. O que restou disso foi um furacão de longos dias acordado girando ao redor de uma mesma questão. Fui consumido pelo fogo e não sei o que vai sair dessas cinzas, talvez só mais um homem sem qualidades.


Por: João de Lírio
(texto originalmente escrito para o fanzine true lies #4 de barra mansa)